15 março 2011

2ºS. 4ª Lição - Melancolia I de Dürer





MELANCOLIA I de Dürer


Dürer- Melancolia I

Dürer teve contacto com a obra de Ficino, sobretudo através das publicações feitas na Alemanha pelo seu padrinho Koberger.
Esta teoria do Saturnismo não foi muito valorizada na Alemanha, apenas Agrippa Nettesheim adoptou a tese de Ficino e escreveu sobre Melancolia, fazendo a ponte da contemplação filosófica para a criação artística.
Esta gravura de Dürer está necessariamente em dívida com a ideia de Melancolia propagada por Ficino, como se pode verificar através da análise dos elementos da mesma.
Nesta gravura Dürer faz, enquanto artista, a equivalência simbólica entre a ideia abstracta de Melancolia e uma Imagem poderosa e expressiva.



O Anjo de Dürer tem a marca da Melancolia, estado de alma atribuído a Saturno.
Na criação artística essa melancolia tanto pode representar (1)a pausa depressiva, depois de completada uma Obra, como (2)um compasso de espera em que alguma coisa se aguarda, seja a revelação, seja a mudança.
No exercício artístico a espera pela inspiração pode traduzir-se num tédio melancólico, que só um novo impulso virá modificar.
O Anjo de Dürer aguarda, de asas caídas, que a transformação se verifique.
A Melancolia I, de 1514, é geralmente vista pelos historiadores de arte como uma figura de mulher representando a condição humana, ambiguidade entre o poder central da razão e a impossibilidade de atingir a perfeição do conhecimento e da vida, da sabedoria divina e dos segredos da natureza.


Símbolos:

A escada, que podemos encontrar em muitas gravuras alquímicas, símbolo do caminho e da ascensão a que conduz. Símbolo cristão de união entre o Céu e a Terra.

A balança, símbolo do equilíbrio, da harmonia que o humor melancólico precisa cultivar.
O cão enrolado aos pés, animal que é companheiro da obra humana (como acontece no Fausto de Goethe, quando Mefistofoles escolha a forma de cão para seguir Fausto até casa).A Tradição antiga considerava que o cão também podia sofrer de Melancolia à semelhança dos humanos
-Fidelidade, Vigilância, guardião. Para Agrippa Nettesheim (seu contemporâneo), o cão é acompanhante dos magos e feiticeiras
-O cão é representado a dormir, parece estar moribundo, apático, deprimido.
-É também um animal associado a Saturno, à disposição melancólica dos eruditos e dos profetas.
-O cão é uma figura auxiliar no estado melancólico geral da gravura
-A dor consciente de um ser humano que se debate com problemas está manifesto tanto pelo sofrimento inconsciente do cão a dormir como na feliz inconsciência do menino atarefado a escrever.

O compasso na mão, símbolo da ordem que a medição impõe.
A ampulheta, que mede o tempo, limite último da nossa condição e símbolo de Saturno (Kronos- Deus do Tempo).
A esfera, representação máxima da completude, da perfeição.
O Poliédro, símbolo da Pedra alquímia

Sino costuma ser associado a símbolos de culto. Um sino preso num bastão em forma de T, é uma atributo de Santo António e servia para espantar demónios e tentações
Mó de moinho Em algumas passagens bíblicas a mó é atirada do céu para a terra como sinal do juízo divino


Diz o próprio Dürer, que a chave significa poder e que a escada significa riqueza.
Associação entre melancolia e poder enquanto “propriedade”, aqui simbolizado pelas chaves.Segundo a tradição medieval, o humor melancólico conduzia à avareza (avaritiosa melancolia)
Segundo a mitologia grega, Saturno era considerado o distribuidor e guardador da riqueza (tesoureiro), e o inventor da moeda.Há muitas representações de Saturno sobre moedas de ouro ou do humor melancólico a contar moedas.

“A Chave denota poder e a escada riquezas” Dürer




Muitas representações associadas à Melancolia e à reflexão, recorrem à figura de cabeça inclinada, apoiando o queixo, ou parte da cara sobre a mão.
Este gesto é antiquíssimo, surge por exemplo em relevos de sarcófagos egípcios, e está associado à reflexão, à dor, ao sofrimento, e também ao pensamento criador.
Surge em muitas representações clássicas de Kronos-Saturno e em representações medievais de santos, poetas e filósofos, como símbolo de reflexão, fadiga, meditação.
(Não é por acaso que na representação de Rafael, a figura de Heraclito, que corresponde à representação de Miguel Ângelo, surge nessa posição melancólica.
Rafael - Escola de Atenas, 1506 – 1510)




Apesar desta posição, cabeça apoiada na mão, ser uma imagem recorrente, a representação de Dürer é original, em vez de usar uma mão solta e descontraída, usa o punho cerrado.
Dá expressão artística a um símbolo sempre associado ao humor melancólico: a avareza simbolizada com o punho cerrado, de quem não quer dar nada, mas sim guardar tudo para si
A mão cerrada sustém a cabeça, aproxima este símbolo da sede do pensamento, como se tivesse um grande tesouro encerrado na mão.

O punho cerrado representa também a concentração de uma mente genial, mas ao mesmo tempo incapaz de desvendar os mistérios da alma humana.
O Rosto escurecido pela sombra, pode remeter para uma antiga tradição (medieval) que defende que o melancólico tem o rosto escurecido em virtude do excesso de Bilis Negra (característica temperamental e patológica), representação psico-física, aqui usada por Dürer com o intuito de expressar um estado emocional.




Geometria:
Nesta gravura há uma nítida associação entre o trabalho do geómetra e o temperamento melancólico, como se se tratasse de uma fusão entre pensamento e sentimento
Dürer teve a ousadia de elevar um temperamento melancólico à altura da Geometria intelectual.
Dürer enobrece a Melancolia, atribuindo-lhe um ócio intelectual associado às Artes Liberais

A Geometria era a ciência por excelência no tempo de Dürer.
A arte era definida pela medida, à imagem de Deus que criou todas as coisas do mundo segundo número, peso e medida
A geometria era o que conferia objectividade e inteligibilidade à arte
Logo que regressou de Itália e impressionado com o uso e ensino generalizado da Geometria, começou logo a ensinar aos artistas alemães, geometria e perspectiva.
Dürer no seu tratado da Pintura não se cansava de louvar a Geometria, afirmando que ela confere ao artista um poder criador, que é a essência do génio artístico.
Não se trata de uma Melancolia qualquer, mas sem dúvida de uma Melancolia associada ao génio artístico, que tinha no seu fundamento a geometria.

Remuneração Artística:
O melancólico da gravura está rodeado dos seus instrumentos de trabalho, e os símbolos de poder e de riqueza (escada e chaves) podem apontar para a justa remuneração dos artistas, (tema muito em voga nos tratados de arte do renascimento) como direito legítimo pelo estatuto da sua profissão.

Recompensa essa que na Antiguidade clássica era assumida dignamente e depois deixou de ser, e pela qual os artistas do Renascimento reclamavam.

“Os Reis enriqueciam os melhores artistas e honravam-nos, pois pensavam que os muito sábios ostentavam uma semelhança com Deus. Deve pagar-se muito dinheiro a um artista excelente pela sua arte…” Dürer - Nachlass

As riquezas são pois um direito legítimo do verdadeiro artista, aquele cuja obra se baseia no uso consciente dos princípios teóricos da produção artística e no seu talento inato.


Dürer foi o primeiro artista que elevou o retrato da melancolia à dignidade de um símbolo, de uma alegoria, que cria uma correspondência entre ideia abstracta e imagem concreta.

A sua representação da Melancolia não tem nada a ver com as representações dos quatro humores, que representam doenças e temperamentos.
Dürer associa a Melancolia a uma arte Liberal, a Geometria, e faz desta imagem a representação do “typos Geometriae”, rodeado de todos os seus instrumentos de trabalho.
A Figura da Melancolia está sentada diante da sua obra inacabada, rodeada dos instrumentos de trabalho criador.
Há uma inércia. As ferramentas estão lá como que atiradas ao acaso, inúteis, a figura da Melancolia está alienada de tudo o que a rodeia.
Não há dúvidas de que se representa uma Melancolia Pesarosa, ou ociosa depressão.
Nesta gravura temos a fusão entre a arte geométrica e o tipo melancólico, combina o intelecto poderoso de um génio com a capacidade humana para o sofrimento.


CREPÚSCULO:
Esta imagem está iluminada por uma estranha luz crepuscular, onde magicamente se vêem fenómenos celestes no céu.
Representa-se um crepúsculo através das condições naturais, a lua ou o sol alto, as sombras, o mar ao fundo cheio de brilhos, e representa-se o crepúsculo de uma mente que não consegue arrancar os seus pensamentos da escuridão.


“Um génio com asas que não vai voar, com chaves que não usará para abrir, com uma coroa de louros, mas sem sorriso de vitória” Ludwig Bartining, 1929


Podemos associar o menino à prática e o Melancólico à teoria. Figura que contrasta com a do Melancólico, apesar de estarem em posições semelhantes e de ambos serem alados.O menino está activo, escrevendo enquanto o melancólico está passivo, reflectindo.
As duas figuras parecem alheadas uma da outra, cada uma no seu mundo.

“A ciência é o capitão e a prática são os soldados” (Leonardo da Vinci)





Ficino Para Durer


Os fundamentos base desta gravura são as teorias de Ficino acerca da Melancolia.
Ficino tinha reabilitado a imagem outrora negativa do temperamento melancólico, que passou de um temperamento doentio a genial, assim como Saturno passou de planeta maléfico a generoso (Melancolia Generosa, criativa)
A associação entre melancolia e geometria é de Dürer e não de Ficino, que em nenhum dos seus escritos as associa.
Ficino, estranhamente, desprezou na sua obra a teoria artística que o rodeava e que defendia a importância da matemática e da geometria como bases do poder criador dos artistas.
Para Ficino os intelectos criadores são aqueles cujos esforços são guiados por Saturno, e refere-se sobretudo aos humanistas, homens de letras.
Para Ficino os melancólicos eram os contemplativos (filósofos e humanistas) e não os imaginativos (artistas)
O tipo de Melancolia representada por Dürer foi sem dúvida uma Melancolia associda ao génio artístico e por isso à via imaginativa, ainda que contrariando a obra de Ficino, que Dürer certamente conhecia bem.


Marsilio Ficino De Vita Triplici, I:
“As causas que fazem que os intelectuais sejam melancólicos são de três tipos: celeste, natural e humana. Celeste porque segundo dizem os astrónomos, Mercúrio convida-nos a procurar as ciências e as artes, e Saturno faz com que sejamos perseverantes nessa procura, e uma vez alcançada que a conservemos.A causa natural parece consistir no facto de que para adquirir o conhecimento das ciências, sobretudo das mais difíceis é necessário que a alma se recolha do exterior ao interior e se mantenha no centro do homem, o que é próprio sobretudo da terra, que é muito parecida com a Bílis Negra. Esta estimula o espírito a recolher-se em unidade. Esta semelhante ao centro do mundo incita a indagar o centro de todas as coisas e de cada uma delas se eleva até à compreensão das realidades mais sublimes, pois encontra-se em harmonia máxima com Saturno que é o mais elevado dos planetas.A causa humana, é a que depende de nós próprios, a actividade frequente da mente seca o cérebro, consome uma grande parte do humor que é o sustento do calor natural, e assim a natureza do cérebro torna-se fria e seca, que é uma qualidade terrestre e melancólica.”

“A melancolia que nasce de um aquecimento pode ser prejudicial à capacidade do Juízo. Pois com efeito quando o humor se acende e arde pode produzir aquele delírio que os gregos chamam mania, e nós chamamos furor.” (Êxtase)

Marsilio Ficino Teologia Platónica, livro XIII, Cap. II:
“Sobre os Poetas
Consideremos o frenesim divino que refere Demócrito e Platão, no Fedro e no Íon, quando este termina, os poetas não entendem muito do que produziram durante o seu efeito. É como se o deus falasse através deles como se através de trompetas.
Alguns dos maiores poetas eram loucos como se diz de Homero e de Lucrécio, e outros não tinham instrução como Hesíodo e Íon.
Os poemas mais esplêndidos não são invenção do homem mas uma doação dos céus.”´



São Jerónimo, Dürer, MMAA


MELANCOLIA GENEROSA

A ideia de melancolia que evoluiu de doença a condição especial, passa a ser vista como condição para a criatividade artística.
A melancolia como factor positivo associada à condição natural do génio, e como sinal de profundidade de espírito.
Por um lado é um estado emocional e subjectivo, por outro é um estado intelectual e objectivo.
A leitura que se faz da Melancolia nos séculos XV e XVI é verdadeiramente humanista, pois trata-se de uma afirmação da liberdade e da personalidade humana
Assim como havia o “perfeito cortesão”, o “príncipe déspota”, havia também o “intelectual melancólico” que evoluiu para o “génio extraordinário”
O Culto da personalidade é característico da Renascença.

“O homem é a medida de todas as coisas” (Plutarco) – herança da antiguidade

Floresceu no Humanismo o ideal da Dignidade Humana, que não é mais que a defesa da soberania da mente humana e da auto realização humana através do exercício da sua liberdade.
Em pleno Renascimento vive-se activamente a contradição entre o talento artístico ter origem no próprio humano ou numa graça divina.
No Humanismo italiano recupera-se um princípio da Antiguidade, o da Vida Especulativa, dedicada à reflexão, a defesa do ócio.

Na obra “Melancolia I” de Dürer podemos ver um elogio à vida especulativa em detrimento da vida prática simbolizado pelo abandono dos instrumentos de trabalho.

AMBIGUIDADE:
A Dignidade Humana e a posição central do humano no universo, de que fala Pico della Mirandola, dá origem a uma ambiguidade: por um lado a mente racional é poderosa e central, por outro está consciente dos seus limites e da sua finitude.
A questão da auto realização e da liberdade ganha novos contornos: o humano face aos problemas que resultam da sua liberdade: a responsabilidade!
GÉNIO
É esta ambiguidade que conduz à noção de “Génio Moderno”
Os humanistas italianos reconheceram essa ambiguidade e comparam-na às qualidades de Saturno e deram-lhe valor!
O reconhecimento e a visão optimista da melancolia, vem acompanhada da visão trágica das limitações humanas, daquilo que não se pode controlar através da razão.

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