12 abril 2011

2ºS. 7ª Lição- Francisco de Holanda: Metodologia da Pintura; Importância da Ideia

Metodologia da Pintura

O processo artístico deverá obedecer a um método, que o acompanhe desde o momento da concepção da obra até à sua plena concretização. Podemos por isso falar de uma metodologia da pintura, exposta sob a forma de princípios a que a pintura se deve submeter, e vem responder à necessidade de legitimar cientificamente o processo artístico.
À pintura atribui três partes, (1) a Ideia, a (2) Proporção e o (3) Decoro, expostas de forma extremamente claras:
"E forma-se de três eficazes preceitos, que a têm como colunas, sem as quais não pode estar. O primeiro é a invenção ou ideia; o segundo é proporção ou simetria; a terceira é decoro ou decência (...)"[PA pág. 21]

A primeira, a IDEIA, é a que tem maior importância e significado para Holanda.
“E sendo a mais nobre parte da pintura, não se vê de fora, nem se faz com a mão, mas somente com a grande fantasia e a imaginação”[PA, pág. 42]
A concepção da ideia, dá-se com muito cuidado e advertência. É uma longa meditação prudente que tem lugar na imaginação. A ideia é génese interior, mas também é ordem e selecção.
Para Holanda, quando a ideia está concebida, então, o artista já pode “dar por assegurado aquilo que tinha por incerto, guardado no lugar mais secreto que temos.[PA pág 43]”
Deste primado da ideia, decorre que a criação artística é um acto individual e intransmissível, que tem lugar no pensamento humano.
“A ideia na pintura é uma imagem que há-de ver o entendimento do pintor com olhos interiores em grandíssimo silêncio e segredo, a qual há-de imaginar e escolher a mais rara e excelente que a sua imaginação e prudência puder alcançar (...)”[PA pág. 43]

A Imaginação é a faculdade da Ideia. A ideia manifesta-se em imagens interiores. A obra de arte faz-se no momento da sua concepção mental, já como obra em imagem. A faculdade da imaginação, não tem em Holanda um carácter intuitivo. Há uma identificação entre o entendimento e a imaginação.
Holanda confere ao entendimento imagético, a produção de ideias-imagens e a selecção de imagens, daí que retire ao conceito de ideia, qualquer noção de natureza abstracizante. Aqui, a ideia holandiana distingue-se da ideia platónica que está mais próxima de conceitos matemáticos e de uma noção arquetipal que enforma uma multiplicidade empírica.
Em Platão, as ideias caracterizam-se como causa e modelo da realidade empírica, tendo uma existência independente do mundo sensível. As ideias são para Platão, a verdadeira realidade, o ser em si, a fonte e o fito do verdadeiro conhecimento. As ideias platónicas são entidades arquetipais e por isso, fundamento da diversidade sensível.
A ideia em Holanda não é universal, nem essência do múltiplo, é arquétipo de uma obra singular. Holanda transforma a ideia em princípio de produção, o que vem contrariar a tese platónica, na qual as ideias só poderiam ser alvo de contemplação. Na imaginação do artista, cada ideia dá origem a uma obra de arte singular, que é modelo interior e único do artista que a concebe.

Holanda afirma que o artista irá:
“(...) mostrar fora com a obra de suas mãos propriamente, como o concebeu e viu dentro em seu entendimento.”[PA pág. 43]

Holanda defende a precedência da ideia no processo criativo, socorrendo-se do exemplo divino:
“Dizem os filósofos que o sumo inventor e imortal Deus, quando fez as suas obras tais como ele só entende e conhece, que primeiro no seu altíssimo entendimento fez e teve os exemplos e ideias das obras que depois vieram a ser.”[PA pág. 44]

A mente artística, à semelhança do entendimento divino, possui a função de criar arquétipos, mas não de uma multiplicidade, tal como o entendimento divino é capaz, mas antes de uma obra particular.
A teoria das Ideias em Platão está em íntima sintonia com a teoria da Reminiscência, e é possível sentir em Holanda um eco dessa sintonia:
A boa pintura não é outra coisa senão um traslado das perfeições de Deus e uma lembrança do seu pintar, finalmente uma música e uma melodia que somente o intelecto pode sentir, a grande dificuldade.[DR, pág 30]

A ideia é criativa no sentido poético, pois é por seu intermédio que se passa do não ser ao ser. A ideia é espontaneidade da mente do artista e é expressão da sua individualidade, uma vez que não é obtida por indução da multiplicidade empírica, mas antes, é contemplação interna, é obra do entendimento e do espírito
Esquisso são as primeiras linhas ou traços que se fazem com a pena, ou com o carvão, dados com grande mestria e depressa, os quais traços compreendem a ideia e invenção do que queremos fazer, e ordenam o desenho;[PA, pág. 45]








DO Esquisso ao Desenho

O esquisso é o momento primordial que tem o privilégio de ainda não obedecer a regras racionais, é a manifestação da ideia, que se dá quase de forma automática e incontrolável, em obediência ao divino furor. O esquisso é a primeira revelação da ideia.
Diz Holanda que o esquisso compreende a ideia do que se quer fazer e que ordena o desenho. Podemos dizer que o esquisso é de alguma maneira a intimidade do próprio artista que cria livremente a partir da sua ideia interior.
E digamos assim: logo como a ideia está determinada e escolhida, como se quer pôr em obra, far-se-á logo em Desenho; e primeiro que este se faça ainda em sua perfeição, se faz o esquisso, ou modelo dele.”[PA, pág. 44]
O esquisso dá origem ao desenho limando-o e ajuntando-o pouco a pouco[PA, pág. 45]. 

O desenho parece sustentar os pilares da obra e também da racionalidade, pois nele estão reunidos: a ideia, a proporção e o decoro, ou seja, os três preceitos da pintura:
“O qual desenho, como digo, tem toda a substância e ossos da pintura: antes é a mesma pintura, porque nele está ajuntado a ideia ou invenção, a proporção ou simetria, o decoro ou decência, a graça e a venustidade, a comparticipação e a fermosura, das quais é formada esta ciência.”[PA, pág. 45]

O desenho é a mãe de todas as artes, daí que, não passando da linha que contorna as figuras, nele está contido todo o poder da pintura ou da escultura, ou da arte que o desenho informa:
“E em tanto ponho o desenho, que me atreverei a mostrar como tudo o que se faz em este mundo é desenhar; e falando com os pintores, também me atrevo a provar-lhes e fazer-lhes bom que vale mais um só risco ou borrão dado pela mestria de um valente desenhador, que não já uma pintura muito limpa e lisa e dourada e cheia de muitas personagens feitas de incerta pintura e sem a gravidade do desenho.”[PA, pág. 45]



PROPORÇÃO

A Proporção é o segundo preceito da pintura e está intimamente ligado à noção de desenho, constituindo assim a estrutura comum a todas as formas de expressão plástica em função da medida ou «razão» original, segundo a qual foi criado o universo.
A proporção é a coluna que sustenta o desenho. Manifesta-se através da simetria ou do canon.
A medida será o corpo humano, à imagem da Antiguidade e recorrendo talvez ao célebre preceito de Protágoras que diz ser o homem a medida de todas as coisas.
O corpo humano é a medida do canon, num módulo de 1/10, e numa base de correspondências, que se estende para a arquitectura, como por exemplo, nos templos dos deuses, diz Holanda, seguindo Vitrúvio:
“Mas o corpo do homem desta arte o compôs a natureza: que o rosto, da barba até o fim da testa e raiz dos cabelos, seja a sua décima parte.” [PA, pág. 46]



DECORO

O Decoro ou Decência é a terceira fase. Apesar do uso deste último termo, Decência, o desenvolvimento deste tema, não trata minimamente de aspectos de ordem moral, mas antes a sua preocupação é exclusivamente estética. Holanda diz que o decoro está presente em quase todas as disciplinas da pintura, isto é, tem de haver decoro no uso das cores, na história que se representa, nas proporções, etc.
Conceito que se prende com o sentido, a coerência interna e a harmonia geral da obra
Ao longo do capítulo 38º Do Decoro ou da Decência, nunca nos apresenta uma definição clara, mas antes exemplos
Holanda em vez de definir a palavra decoro, vai ilustrá-la com um exemplo bastante esclarecedor:
Mas propriamente o que chamo decoro na pintura é que aquela figura ou imagem que pintamos, se há-de ser triste ou agravada, que não tenha ao redor jardins pintados nem caças, nem outras graças e alegrias; mas antes que pareça que até as pedras e as árvores, e as alimárias e os homens sentem e ajudam mais sua tristeza, que não há alguma coisa sensível nem insensível ao redor da pessoa triste e agravada que não agrave e faça condoer mais dela aos que a olham.[PA, pág. 74]

Como podemos constatar, trata-se da adequação entre a forma e o seu significado. É a correspondência entre o visível e o invisível. O decoro é esta capacidade de captar a emoção, um estado de alma, ou seja o estado interior ou psicológico na pintura, e ser capaz de o expressar com fidelidade e com sentido.
O decoro surge como exigência de coerência, de profunda influência aristotélica. (Verosimilhança- Poética)
Trata-se da coerência entre o interior e o exterior, de modo que a obra de arte nos remeta para um todo com sentido.
Daí que Holanda nos diga, que não faria nenhum sentido evitar que um mancebo seja representado, por exemplo, com mãos ou pés de velho.
Faz também parte do decoro o bom senso na selecção de imagens, porque:
“(...) a pintura, tanto há-de ser feita daquilo que se nela faz, como do que se deixa de fazer. E se as figuras forem poucas ou se forem muitas, a ordem que eu nelas emendaria, seria que não ocupassem confusamente toda a tábua ou lugar onde se põem, mas que deixem alguns espaços vazios e dilatados para darem despejo e clareza à sua obra (...)”[PA, pág. 61]

Holanda associa a escolha do formoso e grave com a contenção e simplicidade, numa lógica de economia de meios representativos, em que a tónica é a selecção de imagens.
Holanda adverte que o melhor é fazer um pouco de cada coisa numa pintura, sem excessos e com equilíbrio. Mais vale que esse pouco que é feito seja feito com tal mestria e perfeição que valha mais do que aquela pintura com muitas coisas ao mesmo tempo e sem qualidade.
Esta advertência de Holanda a respeito do decoro, remete-nos para os Diálogos em Roma, quando a respeito da pintura da Flandres, Miguel Ângelo dirá que em Flandres, pintam para enganar a vista, e enchem a pintura de muitas figuras, mas:
(...) na verdade é feito sem razão nem arte, sem simetria nem proporção, sem advertência do escolher nem despejo, e finalmente sem nenhuma substância nem nervo (...) porque quer fazer tanta coisa bem (cada uma das quais, só, bastava por mui grande) que não faz nenhuma bem.[DR, pág. 29-30]

Podemos então concluir que o que falta essencialmente à pintura da Flandres é esta regra do Decoro, esta espécie de justa-medida, à maneira aristotélica, que confere à pintura a naturalidade e a coerência de um todo com sentido. Para que o pintor obtenha o grau de perfeição desejado numa obra de arte, o resultado deve ser:
“Com grande soma de trabalho e de estudo, fazer a coisa de maneira que pareça, depois de mui trabalhada, que foi feita quase depressa e quase sem nenhum trabalho, e muito levemente, não sendo assim.”[PA, pág. 64 ]

Sem comentários:

Enviar um comentário

Coloquem dúvidas com o devido respeito e coerência, Obrigada :)