03 abril 2011

2ºS. 6ª Lição- Francisco de Holanda e a Metafisica da Criação

Analisaremos primeiro a Biografia de Francisco de Holanda, pois esta, bem como as vicissitudes históricas e os contextos que envolvem a sua vida são da maior relevância para a sua Estética.





Francisco de Holanda nasce em Lisboa, no ano de 1517, conforme o próprio refere no Da Pintura Antigua. É filho de António de Holanda, artista destacado, iluminador, que obtivera uma posição importante na corte portuguesa no tempo de Dom Manuel.
Passou a sua juventude em Évora, capital cultural portuguesa na época, factor que será decisivo para a sua educação, pois é lá, que recebe uma extraordinária formação humanista, apenas possível nesta cidade, que acolhia D. João III.
Aqui se manifesta uma apetência pelos valores e ideais humanistas, representados por personalidades como André de Resende, o escultor Nicolau Chanterenne que aí reside entre 1533 e 1540, Aires Barbosa, Miguel da Silva, Nicolau Clenardo, etc.
O século XVI, foi em Portugal o século do enraizamento da cultura humanista. A corte contribuiu para esse facto através do recrutamento de humanistas italianos para educar os príncipes e também por enviar portugueses para estudar em Itália. Holanda irá beneficiar de todo este contexto italianizante bem como da sua estreita vivência cortesã.
Com a deslocação da corte para a cidade de Évora, para lá se deslocaram os artistas e também mestres estrangeiros que se fixaram em Portugal, o que contribuiu para a fixação de uma comunidade artística e literária em Évora. O humanismo português é um movimento que se dava exclusivamente em torno da vida da corte e da experiência cortesã.

Infelizmente o entusiasmo humanista do Rei D. João III será breve, e terminará em 1555, com a entrega do ensino à Companhia de Jesus que acompanha uma mudança radical na atitude do monarca: de humanista a fanático, tornando-se subserviente ao poder da igreja e permeável à introdução da inquisição em 1536, pois o movimento luterano era já uma realidade europeia.

Pensa-se que foi na cidade de Évora, que Holanda adquiriu grande parte dos seus conhecimentos, quer em termos artísticos, quer teórico-literários, uma vez que, a sua vasta cultura, não poderia ter sido adquirida apenas, no curto espaço de tempo que passara em Itália. Os seus escritos testemunham a sua profunda erudição, quer na diversidade e multiplicidade de fontes citadas, quer no domínio das línguas clássicas e do italiano.
A vivência em Évora permitiu-lhe o contacto com algumas das poucas antiguidades, ruínas romanas que o nosso país possui, vivência essa que será decisiva no seu desejo de aprofundamento desse saber, e no seu desejo de conhecer Roma, local mítico para Holanda por representar a fusão do Antigo-Novo.

É também em Évora que Holanda contacta com Dom Miguel da Silva, que passara mais de dez anos em Roma, na idade de ouro de Leão X e Clemente VII, como embaixador do Rei de Portugal, habituado a uma vida luxuosa e cosmopolita em pleno apogeu do Renascimento. Era amigo de Rafael e de grandes vultos da Itália renascentista, teve um papel activo na vida cultural de Roma. D. Miguel da Silva trouxe para Portugal na sua rica biblioteca, uma série de obras que lhe foram dedicadas, entre elas, a que Baltassare Castiglione dedica, em 1528, o Libro del Cortegiano, obra que é uma das primeiras leituras de Holanda sobre Itália e que é também uma das principais obras da literatura renascentista, e também o Paraphrasis in Politicum Platonis de Francesco Cattani da Diacceto, discípulo e sucessor de Marsilio Ficino, ambos fontes do Da Pintura Antigua.



Com apenas vinte anos de idade, em Janeiro de 1538, Francisco de Holanda parte para Itália, integrando a embaixada de D. Pedro Mascaranhas, na qualidade de cortesão:
Esta intenção de Dom João III, de o enviar a Itália, revela bem a sua política humanista e o apreço e confiança que depositara no jovem Francisco de Holanda. É sob o impulso de D. João III, que se dá aquilo a que se pode chamar, a introdução de certos valores estéticos do Renascimento em Portugal. Sabe-se que D. João III, para além do mecenato e humanismo, também tinha interesses pragmáticos de estratégia militar.
Holanda percorreu grande parte de Itália, animado pelo espírito de conhecer e desenhar as obras da Antiguidade, mas também a arte italiana, o antigo–novo, e absorver todos os valores renascentistas que estivessem ao seu alcance. Os ideais do Renascimento que animam o jovem Francisco de Holanda estão bem patentes no Álbum das Antigualhas, no qual estão presentes aspectos pictóricos, poéticos, históricos, culturais.
É ainda em 1538 que chega finalmente a Roma, onde é muito bem recebido, sem dúvida, em virtude das cartas de recomendação que leva. Aí permanecerá mais de um ano. A protecção do Rei de Portugal, a amizade do Imperador Carlos V e de Dom Miguel da Silva, abrira certamente muitas portas.
Desta sua permanência em Roma, é a sua convivência com Miguel Ângelo, que maior curiosidade e interesse tem suscitado. A principal fonte desta amizade é a obra Diálogos em Roma, onde Miguel Ângelo, o principal interlocutor, exprime a sua teoria artística de inspiração neoplatónica. Muito se tem indagado, acerca da veracidade desses Diálogos.
A obra Diálogos em Roma é escrita com um tempo mínimo de intervalo entre as reais conversas com Miguel Ângelo e a redacção do texto, de pelo menos dois anos, o que significa que não podemos esperar uma cópia rigorosa das palavras dos intervenientes nos Diálogos, mas antes um registo de carácter genérico das opiniões de Miguel Ângelo.
É considerado uma fonte válida, pela riqueza das afirmações de Miguel Ângelo, expostas com admirável clareza, pelas questões tipicamente renascentistas e também pelos pensamentos neoplatónicos que lhe eram atribuídos, e que surgem no texto de Holanda com grande coerência.


O "Da Fábrica que Falece à Cidade de Lisboa" e o "Da Sciencia do Desenho", últimas obras de Holanda, terminadas em 1571, são as principais fontes de informação sobre a sua actividade e biografia no tempo que se seguiu à redacção do Da Pintura Antiga.
Estas duas obras marcam uma mudança profunda relativamente aos primeiros tempos. O seu entusiasmo juvenil dá lugar a uma amargura que procura a salvação na fé. No fim da sua vida, acaba por revelar uma atitude espiritual relativamente contrária à linha do humanismo renascentista.
Quanto ao conteúdo das mesmas, Da Fábrica que Falece à Cidade de Lisboa, é um tratado de urbanismo ilustrado, onde propõe uma série de obras para a capital do Reino. Holanda mantém vivo o desejo de com os seus conhecimentos servir o Reino, e de contribuir para uma maior segurança e aprimoramento arquitectónico de Lisboa. Nesta obra de urbanismo, Holanda tenta dar a Lisboa alguma dignidade, à semelhança do que viu in loco na Renascença italiana, vinte e nove anos antes aquando da sua viagem a Itália, em que D. João III o mandara desenhar as fortalezas e outras insignes obras de Itália. Nenhum dos seus projectos para Lisboa se materializou.
Enquanto arquitecto, nesta obra Holanda revela preocupações que abrangem a arquitectura militar, civil, religiosa, a higiene, a estética e o tráfego, manifestando assim uma visão altamente precursora, dinâmica e de carácter global para a cidade de Lisboa. Holanda revela também nos seus projectos as influências que recebeu da sua viagem a Itália, nomeadamente ao nível das fortificações e monumentos.

A sua biografia é extraordinária e paradoxal: de jovem cortesão entre príncipes e reis, a artista da renascença que privou com Miguel Ângelo, na sua estadia em Itália, à sua queda depois da morte do Infante Dom Luís e de D. João III. Até à sua morte, Holanda viverá retirado da vida social no seu monte em Sintra, entregando-se a valores religiosos e contemplativos. Holanda cai em desgraça e acaba os seus dias numa espécie de exílio de inspiração cristã. Há uma fuga da vida social para uma vida rural, mais próxima dos valores iniciais do cristianismo, para uma busca da pureza e da natureza. Numa desilusão amarga mas resignada, de índole monástica e contemplativa, Holanda retira-se para uma espécie de auto-reflexão.
Esta última fase da vida de Holanda é reveladora de um desencanto e de uma certa desistência. Consciente da sua idade avançada e da falta de interesse do Rei pelas artes, afirma que talvez depois de morto este o venha a lembrar, e a servir-se da Pintura.

Morre em 1584, com sessenta e seis ou sessenta e sete anos, em circunstâncias desconhecidas. Não se sabe ao certo se terá morrido em Lisboa, no seu Monte, ou em Santarém.






METAFISICA da CRIAÇÃO

A sua primeira e mais importante obra teórica é o Da Pintura Antiga, esta é também a primeira obra portuguesa a elaborar de forma exclusiva e sistemática uma reflexão acerca da arte.
O Da Pintura Antiga e os Diálogos em Roma compõem uma unidade, trata-se de um só texto que contém dois tratados, duas partes, cada um com o seu prólogo. 

Na 1ª parte Holanda expõe a sua teoria acerca da pintura e do pintor do ponto de vista filosófico, metafísico e estético.
A origem da pintura, tema que Holanda aborda em primeira instância no Da Pintura Antiga, é um tema que se prende com a problemática das primeiras causas, com uma metafísica da criação do mundo entendida como criação artística:

“Da fonte da pintura e primeira causa será o começo de nossa obra”[Da Pintura Antiga, pág. 19]


A metafísica da criação do mundo é entendida enquanto criação artística. A origem da pintura tem uma génese divina e significa não só, que Deus é a primeira causa da existência, mas também fonte e exemplo do poder artístico e criativo do homem.
Para Holanda, Deus é um Deus pintor e o mundo é retábulo pintado:

“Deus, quando quis pintar tudo o que vemos, como perfeitissimo pintor, sobre a escuridade e trevas que cobria o grão retábulo do mundo, começou logo com o claro, e por isso é mais nobre o claro que o escuro.”[Da Pintura Antiga, pág.19]

É da combinação e da variação cromática que provém toda a multiplicidade empírica. Mas o claro e o escuro não são elementos arbitrários, isto é, Deus pintou com o claro por cima do escuro. Para justificar esta afirmação, Holanda recorre à descrição da criação do mundo do Genesis:
Assim que disse Deus: Faça-se luz![PA, pág.19]

A acção demiúrgica de Deus, resulta da acção definidora da Luz sobre um escuro, que é caos informe. Em analogia com o gesto divino e criador de Deus, deve o pintor agir, isto é:
(...) a boa pintura com o claro se deve começar sobre o escuro: e não com o escuro, como todos fazem. Porque primeiro é a luz que a sombra; mas os mortais costumaram o menos de fazer e o mais conforme à miséria humana.[PA, pag.19]

A luz e a sombra têm para Holanda um papel estruturante, uma vez que, constituem a criação do mundo natural, mas também o tempo, isto é, o dia e a noite.
“E à luz chamou dia; e ao escuro e sombra, noite. E com luz e dia, cor perfeitíssima, pintou todas as coisas admiráveis que vemos, e não com a noite; com esta matizou ele as imagens encarecidas dos angélicos tronos e serafins e celestiais quadros que nas suas salas e paços tem, que nunca ainda vimos e esperamos de ver.”[PA, pág. 19]

Mais do que afirmar que a pintura é criação, Holanda afirma que a criação é pintura, na medida em que a pintura é criação de mundos. Esta concepção da pintura aproxima-se da teoria de arte platónica. Apesar de parecer que Platão se reduz a discutir a questão da poesia e dos poetas, é preciso lembrar que a palavra poiesis era correntemente usada para incluir toda a espécie de arte criadora.
“Em geral, chama-se à poesia a causa que faz passar algo do não-ser ao ser, de modo que as criações em todas as artes são poesias e os artesãos que as fazem são todos poetas.”[Platão, O Banquete – 205 c]

Também a acção artística de Deus resultou na passagem do não-ser ao ser. Todas as coisas do mundo e fora dele foram criadas com a pintura divina, mesmo a criação do homem é descrita como pintura:
“Ora mais claramente pintou ele por sua própria mão, tomando limo da terra e formando dela a proporção e fábrica do instrumento absolutíssimo que é o homem. Depois sobre a costa deste pintou a imagem da mulher Eva.”[PA, pág. 20]

Holanda estabelece a distinção entre a pintura divina e a pintura dos homens. Diz Holanda, logo no início do Da Pintura Antiga, que nas obras divinas transparece todo o exemplo e substância da arte da pintura. Porém, a pintura divina é animante e a dos homens, que deriva dessa, é inanimante.
Toda a metafísica da criação do mundo enquanto pintura animante, a ideia de um Deus pintor e dos pintores imitarem Deus quando pintam, poderá ser também compreendido como uma forma de legitimar a actividade artística, associando-a a uma génese divina e intelectual:
“A pintura diria eu que era uma declaração do pensamento em obra visível e contemplativa, e segunda natureza. É imitação de Deus e da natureza prontíssima”[PA, pág. 20-21]

O artista pintor, só o é à imagem de Deus, porque reproduz de forma inanimante o gesto demiúrgico de Deus, no momento da criação.
Holanda confere uma superioridade à pintura e ao pintor, no sentido metafísico cristão, mas não deixa de ser flagrante a influência marcante dos ideais humanistas do renascimento, presente nesta metafísica do homem-artista criador, também presentes em Alberti, Leonardo e Pico della Mirandola.
Este conceito holandiano de criação, marcado pela “criação divina” e pela “imitação de Deus”, vem ao encontro do pensamento neoplatónico, próprio do seu tempo:
“E é finalmente a pintura fazer e criar de novo numa tábua limpa e lisa, ou num papel cego e inobre, criar e fazer de novo quaisquer obras, divinas ou naturais (...)”[PA pág 21]

É desta maneira também, que Holanda irá legitimar a actividade artística, conferindo-lhe a dignidade de agir em conformidade com Deus, através da Pintura.
O artista, pelo exercício de sua arte, tem mais do que os outros homens, o privilégio de chegar até Deus «em casto spirito» (PA I, 8), de o contemplar e de o representar.

O artista pretende ser no fim do Renascimento, uma espécie de expoente máximo do desenvolvimento humano, entendido como microcosmos e como manifestação da reunião entre conhecimento intelectual e capacidade de criar.
O louvor do talento humano, coloca o homem entre o Céu e a Terra, conferindo-lhe a capacidade de decidir a sua própria natureza através da auto-realização, das suas escolhas que assentam na sua liberdade existencial.
A submissão à lei divina passa dá lugar ao livre arbítrio que conduz a acção humana, bem patente no antropocentrismo dos humanistas italianos:
“Na sua fase optimista, Ficino e os seus amigos não perdem nenhuma oportunidade de exaltar o tempo presente em que os trabalhos do arquitecto, engenheiro e do pintor demonstram a nobreza do espírito humano: através do exercício da Razão organizadora, o homem torna-se deus in terris.”[1]
[1] Eugénio Garin (direcção) – O Homem Renascentista, Lisboa: Editorial Presença, 1991, pág. 183

A presença de atributos divinos no ser humano, incitam-no a imitar Deus. Este desejo humano de ascender ao divino é natural ao humano tal como voar é natural ao pássaro, daí que Ficino defina o ser humano como um Deus na Terra:
“Est unique Deus In terris”

O elogio ao humano é feito em função desta posição semelhante à divina, o poder de concepção, e produção de formas é o vestígio do poder divino no ser humano:
“A Pintura (…) é imitação de Deus e da natureza prontíssima.”[1]
[1] Francisco de Holanda- Da Pintura Antiga, Lisboa: Livros Horizonte, 1984, pág. 20










Em Ficino, a grandeza do ser humano é um dos seus grandes temas filosóficos. Ele tenta demonstrar essencialmente que a origem dessa grandeza é incompreensível se não for atribuída ao seu lado divino e à imortalidade da alma.
Essa capacidade criadora prova à evidência que o homem não é um ser da natureza, mas um demiurgo que se aparenta com Deus.
Em Francisco de Holanda, a capacidade criadora do humano está em permanente relação com a divina. A pintura humana imita e reflecte a criação divina numa relação de dependência estrutural e mimética
Podemos sentir em Francisco de Holanda uma ressonância deste elogio do ser humano, não só naquilo que de comum tem com a tendência humanista, mas sobretudo nesta aproximação da dimensão humana à dimensão divina, legitimada não só pela capacidade de criar mas também pelo lado “divino” do humano, que se opõe ao seu lado animal, isto é, o pensamento e a imaginação, motores primordiais da criatividade.
A tarefa primordial do Pintor é imitar Deus no acto da Criação, com a ajuda das Ideias, tal como nos diz Miguel Ângelo nos Diálogos em Roma: “A excelente e divina Pintura, não é senão imitar com o ofício do Imortal Deus”.
O Artista, enquanto Deus in Terris, é-o tanto como o filósofo, ou o metafísico: destruidor da natureza e criador de “novos mundos do homem e para o homem”

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