06 maio 2011

2ºS. 9ª Lição- Talento Inato, F. Holanda, Miguel Angelo, Zuccaro

No Da Pintura Antiga, no capítulo 7º Que tal deve ser o Pintor, Holanda faz uma definição de influência platónica do Pintor. Holanda afirma que não é aprendendo que um homem se pode tornar pintor. A pintura é uma ciência que só se dominará na perfeição se já a trouxermos de nascimento, isto é, de forma inata:

“E não somente para ser perfeito e consumado em tal ciência e tão profunda lhe convém com uma nova graça nascer de Deus e de natural índole raríssima; (...) por que para digno de ser pintor mester há nascer pintor, pois o pintar não se aprende, mas somente se pode crer que com o mesmo homem nasce.”[PA, pág. 31]
Por isso, para se ser artista não basta querer ser, nem basta apenas aprender. Nem cem anos de aprendizagem fariam de um homem sem talento natural, um verdadeiro pintor:
“E contudo um grande engenho (...) e natural vale mais que todo trabalho do mundo; mas nem por isso nascer com ele somente basta, mas há-de logo de ajudar a arte e a ciência e o costume; sem o qual o mór engenho dos homens não teria algum vigor.” [PA, pág. 31]

Apesar de a originalidade do talento constituir o aspecto mais essencial, não basta ser génio. Holanda defende que o talento existe como uma espécie de saber em potência, que para ser actualizado, carece de estudo e trabalho.





Miguel Ângelo

A ideia de que a posição artística se aproxima da mania platónica ou do Furor Divinus, a defesa da precedência da ideia na concepção da obra de arte, como momento privilegiado da criação artística, bem como a ideia de que o artista tem uma personalidade especial, entre o excêntrico, o melancólico e o genial, lançam as bases para a tese de que o artista tem uma personalidade própria e que é um ser superior que sobressai entre o vulgo. Diz Holanda que o artista com o seu poder criador, concebe silenciosamente uma imagem interior da obra que há-de criar (a ideia). Esta questão está bem presente no seguinte poema de Miguel Ângelo:

‘As my soul, looking through the eyes, draws near to beauty as I first saw it, the inner image grows, while the others recedes, as though shrinkingly and of no acount’[Anthony Blunt – Artistic Theory, 1450-1600, pág, 63]

"Que ninguém jamais fique admirado do amor de Miguel Ângelo pela solidão, apaixonado como estava pela sua arte que exigia o dom de si próprio e a meditação, ele era, como é exigido para quem mergulha nos estudos, forçado a fugir da companhia. Quem fique preso às questões da arte nunca está só e sem razões de reflexão. Se lhe deram um carácter estranho e singular, foi errado, já que um bom trabalho artístico requer uma distância perante os problemas fastidiosos, o génio exige reflexão e solidão propícia, sem deixar o espírito perder-se" [Vasari - Vida de Miguel Ângelo]

Para Holanda, o artista não deve imitar ninguém, deve apenas seguir o seu engenho e talento natural. Está bem presente em Holanda, a ideia de uma espécie de inspiração divina ou de furor divinus, o que implica também, uma individualidade e liberdade face à regra:
“For Michelangelo, on the other hand, the artist, though directly inspired by nature, must make what he sees in nature conform to an ideal standard in his own mind.” [idem, pag. 64]


Esta exigência de originalidade, é também uma exigência de solidão. A individualidade do artista é marcada por uma independência face à comunidade artística que o rodeia e o seu espírito, para não se corromper, permanece isolado, numa espécie de melancolia produtiva.
A emergência do “artista saturnino”, coincide com a influência dos conceitos e ideias desenvolvidos na Academia de Caredgi, nos pintores e escultores, conscientes da sua dignidade liberal e intelectual. A ideia de que o génio criador é um ser melancólico, nunca mais deixará de exercer influência na vida artística ao longo da história, e será um conceito que juntamente com a excentricidade, estará sempre a par da exaltação da personalidade artística.
A personalidade do artista é pouco social, pouco dada a conversações, é genial porque é um dom dado por Deus, e é um grave carrego, não só porque é uma actividade séria e intelectual, mas porque é melancólica.




No séc. XV e XVI, o reconhecimento de um estatuto do artista, anda a par da exaltação de uma personalidade melancolicó-saturnina, que tem em Miguel Ângelo o seu melhor exemplo. O artista melancólico, não é propriamente o perfeito cortesão, como Rafael. Miguel Ângelo é quase um anti-cortesão, na sua personalidade difícil e associal.
A independência face à regra e o seu individualismo artístico, criaram a ideia no séc. XVI que Rafael, pela seu espírito equilibrado, pelo seu talento universal, pela sua capacidade de agradar a todos e de obedecer às regras que sustentavam a arte, era um excelente pintor, enquanto Miguel Ângelo era um génio extravagante, a quem faltava a qualidade da graça e da moderação.
Os artistas do século XVI foram marcados pela atmosfera neoplatónica que se fazia sentir, como uma espécie de cultura em pano de fundo:
“But among all his contemporaries Michelangelo was the only one who adopted neoplatonism not in certain aspects but in its entirely, and not as a convincing philosophical system, let alone as the fashion of the day, but as a methaphysical justification of his own self.”[1]~





Miguel Ângelo seria um dos poucos artistas que frequentou a Academia de Caredgi e revela que assumiu o pensamento neoplatónico que circulava na Academia, tanto na sua poesia como na sua obra artística, como é bem visível no túmulo dos Médicis ou nas estátuas Lia e Raquel ou correspondentemente Vida Activa e Vida Comtemplativa (túmulo de Júlio II): [1] Erwin Panofsky- Studies in Iconology- Humanistic themes in art of the Renaissance. Colorado, Oxford: Icon Editions, Westview Press, s.d., pág. 180
Para este génio-melancólico, o resultado do devir da inspiração e o furor divinos, exercem o seu poder na produção artística em detrimento da perfeição das regras da arte. O artista, diz-nos Holanda, pelo seu poder de criação tem uma função divina, comparada ao próprio Deus. O desenvolvimento desta ideia neoplatónica permite colocar a pintura e o desenho no topo das actividades humanas, como as mais nobres de todas.
A noção de Furor divino, vem ao encontro desta ideia. O artista, através do seu génio criador, está mais perto de Deus, e por isso a experiência transcendental do Furor divino surge como uma consequência natural da sua capacidade de criação, tão próxima da divina. A definição de Marsilio Ficino de furor divino, certamente conhecida de Holanda, poderá lançar luz sobre esta expressão:
(...)uma espécie de iluminação da alma, através da qual Deus revela como num relâmpago no mundo inferior e a atira para o mundo superior”.[1] André Chastel- Marsile Ficin et lárt. Genéve: Librairie E. Droz; Lille: Librairie R. Giard, 1954, pág. 169 – citação tirada do séptimo discurso do comentário de Ficino ao Banquete de Platão. (VII, 13-14)


E no entanto, é este modelo, de artista saturnino, melancólico, excepcional, que vai conferir ao artista a ideia de génio e de uma capacidade intelectual e espiritual, afastada das coisas terrenas, que dominará o séc. XVI e sustentará os pilares da ideologia Maneirista.
O artista é um ser de excepção, e não deve estar sujeito às regras da sociabilidade a que são obrigados os comuns dos mortais. Não deixa de ser curioso que Holanda defina a personalidade artística, totalmente à luz da de Miguel Ângelo, que na sua rebeldia, não se submetia aos cânones cortesãos:

“E logo de seu mesmo buscará a lição de poesia e uma nas letras que facilmente como ao Senhor se entregarão, sem as quais não pode seguir a difícil perfeição; (...)
Está bem ao raro desenhador ter algumas liberdades e condições, assim no conversar sem comprimento, como em outras coisas livres que lhe pede o seu cuidado e a ocupação do seu intento, as quais coisas não são lícitas a outro homem ocioso.” [PA, pág. 31]

“E não somente para ser perfeito e consumado em tal ciência ou arte neste mundo para sua perfeição lhe foi necessário trazer a origem e natural de seu nascimento, sem dúvida nenhuma esta deve ser a arte da pintura.”

“E contudo um grande engenho e natural vale mais que todo o trabalho do mundo; mas nem por isso nascer com ele somente basta…”
PA, pág. 30-31




Miguel Ângelo refere-se ainda à condição do artista, nos Diálogos em Roma, como aquela que lhe permite preferir servir o Papa, antes com a arte do que com a companhia, e afirma ainda que conversa com o Papa livremente e com algum descuido na apresentação.
E no entanto, diz ele, “não me matam por isso, antes me têm dado a vida.” [DR, pág. 28].
Miguel Ângelo refere-se à condição artística como um grave carrego[DR, pág. 28] que se assume aqui, como a legitimação de um estatuto que parece tudo justificar.
Um pouco mais adiante, afirma que o artista, por ser tão excepcional, deverá ter direito a algumas liberdades e condições:
“ (...) assim no conversar sem cumprimento, como em outras coisas livres que lhe pede o seu cuidado e a ocupação do seu intento, as quais coisas não são lícitas a outro homem ocioso.”[DR, pág. 31]



Holanda não fala explicitamente em Melancolia, ou numa personalidade saturnina, mas a personalidade artística que defende, como ser superior e de excepção vem ao encontro da noção de Melancolia em muitos aspectos.
Miguel Ângelo encerra o protótipo desta teoria do pintor, pelo seu estatuto e pela complexidade da sua personalidade que vai, quer ao encontro da “mania” platónica e do Furor Divino, quer da noção de Melancolia em Aristóteles, que Holanda tão bem descreve nesta passagem:
(...) e se ser pudesse pôr-se o estilo na mão e fazê-la com os olhos tapados, melhor seria, por não perder aquele divino furor e imagem que na fantasia leva.[PA, pág. 43]

Miguel Ângelo é o exemplo máximo aos olhos de Holanda, deste protótipo do artista associal, excêntrico, sensível e que vive o fascínio pelo tenebroso e a percepção da realidade para além das aparências e do ponto de vista comum, e é o símbolo deste génio saturnino que marca ideológica e culturalmente o séc. XVI:

(...) M. Ângelo foi constantíssimo, que nunca se deixou aniquilar dos comuns e fracos entendimentos dos imperitos, se não eram conformes à sua primeira ideia e ao próprio natural (...), pintando mais como grande mestre, que como covarde e fraco pintor, tendo mais dever com a imortalidade das coisas, que com fazer a vontade a quem o não entende.” [PA, pág. 36]






Miguel Ângelo simboliza para Holanda o mito do artista que não se submete a nenhuma regra, a não ser à sua própria intuição estética, desprezando condicionalismos de índole social, relativamente até aos seus mecenas:
Miguel Ângelo é já uma encarnação consciente do super-homem nietzscheano, que cada uma das suas figuras exprime plasticamente.
O próprio Miguel Ângelo passa por grandes mudanças na sua vida. De jovem artista fascinado com o ideal da beleza, passa na velhice a estar inteiramente dominado por valores cristãos, sagrados e vincadamente místicos.
“The strong physical passion of the early love poems has given place to doctrines which make love the contemplation of na incorporeal beauty.”[1]
Pode dizer-se que a sua personalidade, tal como a de Francisco de Holanda, também se foi tornando cada vez mais saturnina com o passar do tempo:
“It is hard to believe that the Humanist creator of the early Bacchus or even of the Sistine ceiling would one day pray to renounce the arts from feelings of Christian piety.”[2]
[1] Anthony Blunt, Artistic Theory in Italy- 1450-1600. pág. 70
[2] Idem, pág. 80


É possível até encontrar uma certa semelhança com a evolução do próprio Holanda, que na velhice, exilado no seu monte em Sintra, parece ter renunciado às musas da beleza e aos ideais do classicismo/humanismo, em troca de uma fé mística e de uma entrega aos mais puros valores cristãos, que caracteriza a época da Contra Reforma.
Miguel Ângelo e Holanda, são figuras que pertencem ao fim do Renascimento, mas contemporâneos dos primeiros passos da Contra-Reforma.
As mudanças ideológicas por que passaram correspondem também a mudanças históricas e pode dizer-se que preparam terreno para a implementação da ideologia maneirista.







A Criação de Adão- Miguel Ângelo




A Criação de Adão é um fresco de 280 cm x 570 cm, pintado por Miguel Angelo por volta de 1511, que figura no tecto da Capela Sistina. A cena representa um episódio do Livro do Génesis no qual Deus cria o primeiro homem: Adão.
Deus é representado como um ancião de barbas envolto num manto que partilha com alguns anjos.
O seu braço esquerdo está abraçado a uma figura feminina, que foi interpretada como Eva – que ainda não foi criada e, figuradamente, espera no céu para ganhar uma forma humana. O braço direito de Deus está esticado para criar Adão, o qual esta com o braço esquerdo estendido. A composição é obviamente artística e não literal, já que Adão é capaz de alcançar Deus mesmo antes de ter ganho vida. Pela mesma razão, Eva é vista representada antes de sua própria criação. Alusão à noção neoplatónica de “imagem interior”, noção que representa a faculdade da imaginação, central para o poder criador do artista.
Representação do poder criador divino (animante)
As posições de Deus e Adão, a pintura do braço direito de Deus e esquerdo de Adão são quase idênticas e representam o facto de que, como diz o Génesis 1:27, Deus criou o homem à sua imagem e semelhança.
(O dedo indicador de Adão, a mais famosa representação do fresco, não é de facto um trabalho de Miguel Ângelo. Este foi danificado durante um desabamento em meados do século XVI e foi pintado por um restaurador do Vaticano.)
contraposição ao do criador.






DESEGNO - Zuccaro


Esta noção de Desegno tal como Holanda a define pode ser relacionada com a interessante análise etimológica que faz Frederico Zuccaro da palavra Disegno.
Para Zuccaro a palavra Disegno prende-se com o nome de Deus: as duas primeiras e a última letras da palavra Disegno constituem a palavra Dio.

Frederico Zuccaro- “Le Mithe de la Peinture” in La Peinture, Texts Essenciels, Paris: La Rousse- Bordas, 1997, pág. 34

Já Vasari tinha desenvolvido o conceito de desenho enquanto actividade mental e enquanto princípio unificador de todas as artes.
Zuccaro defende que o Desenho é o princípio fundamental de todo o pensamento.
Ele baseia a sua tese na autoridade de Aristóteles, que defende que a mente forma imagens directamente das impressões sensíveis. Estas imagens são a base de todo o tipo de pensamento, isto é, o Desenho.
O Desenho é a Ideia de todas as coisas.
“É a imagem e a similitude de Deus em nós”
Zuccaro pretende mostrar que todos os pensamentos especulativos e disciplinas liberais bem como todas as actividades humanas derivam do desenho.
Zuccaro termina o seu tratado definindo uma hierarquia de conhecimentos, na qual as artes visuais ocupam a posição mais elevada.

Para Zuccaro, tal como para Holanda, a palavra Disegno denota a ressonância e a imagem de Deus na nossa alma:
"DI , SEGN , O: do nothing further that denotes the sign of the divine image and likeness in the soul. "
Em Lamento della Pittura (1605), critica o pobre estado das artes, sobretudo daqueles pintores que apenas querem agradar ao “olho” e negligenciam o lado intelectual da arte.
Zucarro é neoplatónico: dá prioridade à Ideia, à imagem interior e não à cópia do mundo exterior.

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